SIRA: SISTEMA DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS DEVE ACELERAR EXECUÇÕES FISCAIS

Proposta de base única de dados consta na MP 1040/21. Para especialistas, regras de uso precisam ficar mais claras

As execuções fiscais de débitos inscritos em dívida ativa são um dos principais gargalos do Poder Judiciário brasileiro há anos. Só em 2019, os processos dessa natureza representaram 39% do total de casos pendentes, com taxa de congestionamento de 87%, segundo dados do Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Naquele ano, a cada 100 processos de execução fiscal que tramitaram na Justiça, apenas 13 foram baixados.

Só no âmbito federal, o estoque atual das dívidas ativas supera R$ 2 trilhões, de acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Pouco menos de metade desse montante (45%) é classificado pelo órgão como irrecuperável ou com baixa possibilidade de recuperação.

As causas para esse cenário são inúmeras, como, por exemplo, o complexo sistema tributário adotado no país. Outra é a falta e a fragmentação dos dados desses devedores, o que impede que processos de execução fiscal sejam finalizados. Em um país com a extensão do Brasil, onde vivem mais de 210 milhões de pessoas em mais de 5 mil municípios, não é uma tarefa fácil manter atualizados todos os bancos de informação existentes. Ou seja, encontrar bens do devedor para quitar a dívida pendente é como procurar uma “agulha no palheiro”.

É nesse complexo contexto que se inserem as tratativas em andamento do governo federal, por intermédio da PGFN, com o Congresso Nacional para a criação do Sistema Integrado para Recuperação de Ativos (Sira). A proposta foi enviada em março deste ano ao Poder Legislativo, no âmbito da Medida Provisória 1.040/2021, que tem por finalidade melhorar o ambiente de negócios do Brasil.

Na exposição de motivos endereçada ao Congresso, representantes do governo dizem que o Sira “facilitaria a recuperação do crédito, reduzindo o tempo de tramitação das ações de cobrança, dando maior eficiência à execução de contratos, uma vez que reduziria a alta taxa de congestionamento dos processos de execução”. Segundo o documento, o sistema seria “capaz de reunir dados cadastrais, relacionamentos e bases patrimoniais de pessoas físicas e jurídicas para subsidiar a tomada de decisão no âmbito de processo judicial em que se demanda a recuperação de créditos públicos ou privados”.

“Ao longo dos últimos anos, a PGFN desenvolveu uma boa expertise em recuperação de créditos e isso envolve, obviamente, estruturação e análise de dados. Mas ainda há a dificuldade de, depois de uma sentença favorável ao título executivo judicial, materializá-lo. E aí começa o drama, porque no nosso país essa parte de dados é tão fragmentada quanto a nossa federação”, explica o procurador da Fazenda João Grognet, coordenador-geral de Estratégias de Recuperação de Créditos da PGFN.

Segundo Grognet, o Sira foi pensado para preencher uma “lacuna gravíssima no nosso país, que é do credor ganhar mas não levar”. “Veja, o que estou privilegiando aqui é o direito do credor, mas também estou garantindo o do devedor. E como faço isso? Submetendo o acesso às informações a uma demanda judicial. Nosso Judiciário é suficientemente independente para garantir o direito do devedor. Se o Judiciário disser: isso é impenhorável. É impenhorável e ponto. O que o Sira se propõe é apenas informar que o credor tem um bem”, continua o procurador.

A explicação de Gronet ao JOTA, se confirmada na prática, atenua uma preocupação de advogados especialistas em contencioso consultados pela reportagem. Os especialistas temem que o Sira poderia ativamente fazer a constrição e a alienação de ativos pela via administrativa, e não judicial, devido à redação dada ao artigo 13, II da MP. Isso poderia conflitar com decisão já proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Fazenda Pública pode averbar, mas não decretar a indisponibilidade de bens sem decisão judicial ou direito ao contraditório.

“Não é competência do Poder Executivo fazer constrição de nada. Nesse primeiro momento o Sira se propõe a entregar um relatório ao magistrado, o que nos deixará muito melhor do que na situação de hoje. No futuro, pode ser que haja a integração com outros sistemas, como o Sisbajud [que atua no cumprimento de ordens de afastamento de sigilo bancário e de bloqueio de valores para o pagamento de credores]”, diz Grognet.

Expectativa de redução do contencioso
A proposta de criação do Sira tem como uma das premissas agilizar os processos judiciais e, por consequência, reduzir no contencioso tributário as disputas que ficam paralisadas pela dificuldade de executar as sentenças. Na visão de advogados ouvidos pelo JOTA, a iniciativa é positiva e deve, de fato, acelerar a resolução de litígios de cobranças que não se encerram pelo não encontro de bens para quitar as dívidas.

No entanto, foi unânime entre os especialistas o entendimento de que este novo sistema precisa assegurar todos os direitos, tanto dos credores quanto dos devedores, com travas legais principalmente no que diz respeito ao compartilhamento de dados dos contribuintes, para que novos contenciosos não se criem a partir de seu uso.

Na avaliação de Maria Raphaela Matthiesen, do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, o maior ganho com o uso do sistema deve ser por parte da PGFN, que pode se beneficiar do Sira para dar andamento às execuções fiscais com valores inferiores a R$ 1 milhão e nas quais não tenha sido encontrado nenhum bem.

“Desde 2016, portarias editadas pela PGFN colocaram essas execuções fiscais em segundo plano, e elas acabam sendo arquivadas se no prazo intercorrente não se encontrou algum bem. Com o sistema se poderia ter uma base de dados que auxiliaria a cobrança desses créditos, que ficam um pouco secundários na prioridade”, avalia a advogada, acrescentando que se o Sira for compartilhado com as fazendas estaduais e municipais esse impacto tende a ser ainda maior.

Ao JOTA, Grognet confirmou que está em processo de análise a possibilidade de algum nível de acesso às fazendas estaduais e municipais. “Pode ser possível conceder acesso para tramitar dados não sigilosos. Hoje, os órgãos se limitam a bases como Renajud, Sisbajud e Infojud. Mas isso é a ponta do iceberg das informações públicas patrimoniais que se pode ter acesso”, afirma.

Carolina Chaves Hauer, sócia do G.A Hauer & Advogados Associados, destaca, contudo, que o Sira pode trazer um impacto menos positivo para os contribuintes. “A criação do sistema certamente aumentará a assimetria de informações, bem como a dificuldade de defesa do contribuinte, já que será mais um sistema à disposição da Fazenda Nacional para localização (ou melhor, devassa) de bens dos devedores”, diz.

A possibilidade de acelerar o cumprimento de sentenças de cobrança por intermédio do Sira vai repercutir também em outras áreas, como a cível e a trabalhista, de acordo com Renata Cavalcante de Oliveira, sócia de contencioso cível estratégico e de recuperação de crédito na Rayes & Fagundes Advogados.

“A ideia de unificar em um só sistema o que hoje é pulverizado é bem interessante e vai impactar a advocacia tributária, cível e trabalhista, que trabalham com recuperação de créditos. Hoje pedimos informações para diversos bancos de dados, todos separados, cada um cobrando uma taxa de acesso diferente. Existem, ainda, informações que nem estão disponíveis nos sistemas que hoje usamos. Por isso vejo com bons olhos a ideia de centralizar tudo num só sistema”, avalia.

Na previsão de Dayse Starling, juíza auxiliar da Presidência do CNJ, que atua com o Sisbajud, é possível que a utilização do Sira incentive outros órgãos públicos a desenvolver novas bases de dados, que hoje não existem.

“A concepção do Sira é muito interessante porque a ideia é que ele fomente, entre os órgãos do Poder Executivo mais chamados a cumprir decisões judiciais, a criação de outras bases de dados para que o juiz demande informações. E aí em vez de o magistrado ter que entrar em vários sistemas ou o Judiciário ter que fazer convênio com vários órgãos diferentes tudo estará em um só lugar”, afirma.

De acordo com Starling, um sistema nos moldes do Sira tem o potencial de “retirar o tempo de prateleira dos processos”, ou seja, o tempo que se demora para uma decisão judicial ser executada devido ao moroso processo de encontrar o bem do devedor.

“Hoje, um servidor recebe a decisão e vai entrar em todos os sistemas, solicitar uma demanda e esperar a resposta. Só que nesse meio tempo ele já recebeu uma pilha de outros processos para cuidar”, explica. “Então, com a criação de um sistema eu retiro esse prazo e, por isso, eu acelero o cumprimento da ordem judicial”, continua.

Preocupações com novos contenciosos
Apesar das expectativas positivas com o Sira, os especialistas consultados pela reportagem destacam que, para que o sistema não seja considerado ilegal, é necessário que ele assegure e respeite o direito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas e das instituições, em cumprimento aos preceitos constitucionais e ao devido processo legal.

“Cabe ao legislador demonstrar claramente como essa ferramenta funcionará, como suas bases serão alimentadas e o quanto ela representará, de fato, a realidade do patrimônio e dados cadastrais atuais dos devedores, inclusive para que a ferramenta não caia em descrédito. Sabemos que um conjunto tão abrangente de informações poderá ser utilizado de forma inadequada, e essa é uma preocupação de todos os operadores do direito”, afirma Carolina Chaves Hauer, sócia do G.A Hauer & Advogados Associados.

O ponto de maior atenção levantado pelos advogados envolve a proteção aos dados que os relatórios do Sira disponibilizarão, uma vez que o texto da MP, no artigo 15, IV, diz que um dos princípios do Sira é o “respeito à privacidade, à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas e às instituições, na forma prevista em lei”. A regulamentação das regras e diretrizes para o compartilhamento de dados e informações, entretanto, ficará a cargo de ato posterior do presidente da República.

“A redação dos artigos trata de forma genérica algumas questões relevantes, como nível de acesso e proteção dos dados. Acredito que os limites deveriam estar mais estabelecidos no texto da MP. Mais tarde, no artigo 16, diz que virá o regramento. Sim, mas os congressistas podem estar aprovando uma norma em branco, que pode dar margem para discussão”, afirma Andréa Mascitto, sócia do Pinheiro Neto Advogados e professora de Direito Tributário na FGV.

Para Mascitto, a iniciativa de ter um sistema integrado, que não tenha bases de dados divergentes, é salutar, mas depende de bases definidas para não abrir margem para disputas e resistências com o uso do Sira. “Com mais informações sobre os contribuintes será possível dar andamento a execuções consideradas de baixa recuperabilidade. Isso, por si só, já vai melhorar a efetividade da arrecadação, desde que respeitados os limites das legislações sobre os direitos dos contribuintes”, continua.

O tópico da proteção de dados deve ser discutido pelo Congresso. Na emenda aditiva à MP de número 250, de autoria do deputado Alexis Fonteyne (Novo-SP), propõe-se acréscimo de um parágrafo único no artigo 14 da MP, referente ao respeito do sistema à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “O Sira zelará pela liberdade de acesso, uso e gerenciamento dos dados pelo seu titular, na forma do art. 9º da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, além de todo o regime geral de proteção de dados aplicável”, diz a emenda do parlamentar.

De acordo com Grognet, da PGFN, os acessos ao sistema devem ficar restritos aos magistrados e aos servidores por eles autorizados. Além disso, não haverá mudança na classificação de sigilo dos dados pessoais. “Um ponto importante é que não haverá alteração de classificação de sigilo. Se o dado é sigiloso, ele vai continuar sendo no Sira. Isso não muda em absoluto”, diz o procurador da Fazenda.

Na avaliação de Halley Henares, presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT), para validar um sistema com os moldes do Sira é preciso que haja uma disciplina detalhada na legislação. Caso contrário, afirma, é possível que se crie novos contenciosos para debater a legalidade do projeto.

“Aqui, a meu ver, muita definição ficou aberta para disciplina posterior, e meu medo é que essas lacunas abram caminho para uma discricionariedade sem limites. Além dos pressupostos, é preciso estabelecer quais são os direitos dos contribuintes. Por isso, é importante fixar bem as diretrizes e os critérios. No meu entendimento, isso tudo é matéria de reserva de lei, e não de decreto posterior”, diz.

Henares destaca, ainda, que a implementação do Sira não pode “colocar a perder ou diminuir o espectro de outras modalidades de resolução de litígios no âmbito fiscal, como a transação tributária e a mediação”. “Isso tudo pode gerar insurgência e, como consequência, um novo contencioso, administrativo e judicial, o que não é o objetivo da norma”, conclui.

CLARA CERIONI – Repórter Freelancer. Trabalhou no JOTA de setembro de 2020 a fevereiro de 2021. Antes, foi repórter de macroeconomia na Exame.

Acesso em:
https://www.jota.info/coberturas-especiais/contencioso-tributario/sira-sistema-de-recuperacao-de-ativos-deve-acelerar-execucoes-fiscais-31052021

Matéria elaborada pelo Dr. Halley Henares Neto sobre principais pontos na decisão do STF – Exclusão do ICMS da BC do PIS e COFINS.

Decisão do STF sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins: poderia ter sido pior?

Halley Henares Neto*

Alguns dizem que sim, outros, que não. Certamente, quem fizer parte do rol das “50 mil ações” propostas pelos contribuintes após a decisão de 2017 do STF, como proclamado pelo Min. Alexandre de Moraes, estará entre os que dizem “não”. São eles, aliás, provavelmente, as empresas de médio porte, que por falta de recursos, falta de estrutura de informação ou insegurança em ingressar antes de um pronunciamento do STF, aguardaram até o momento em que esse aconteceu.

Enfim, passados aproximadamente 4 anos da decisão de mérito do STF que exclui o ICMS da base de cálculo, o STF fechou o tema em plenário hoje.

Depois de muito “zigue zague” jurisprudencial acerca da discussão sobre tributo poder incidir sobre tributo (“efeito cascata”) e quais os limites em nosso ordenamento, o STF fechou o tema em 2017, contudo, outros dois foram propostos, em decorrência daquele julgamento, pela União Federal, em sede de embargos: (i) a modulação de efeitos; (ii) o esclarecimento sobre qual o valor de ICMS deveria ser excluído da base do PIS e da Cofins, o valor líquido recolhido ou o valor bruto destacado na nota.

Sobre esses dois pontos, o STF decidiu, a partir do voto da relatora, Min. Carmen Lúcia, que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade devem ser modulados. Seguida pelos Ministros Alexandre de Moraes, Luiz Roberto Barroso, Dias Toffoli, Lewandowski, Fachin, Marco Aurélio e Rosa Weber (com divergência dos Ministros Gilmar Mendes, Kassio Nunes e Luis Roberto Barroso – cf quadro abaixo)

Pontos negativos para o contribuinte:

  • A relativização dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade (nulidade), a partir do julgamento em 2017 pelo STF, conforme proposto pela Min. Relatora Carmen Lúcia e acatado por maioria pela Corte Suprema, confere o direito aos contribuintes de excluir e restituir por integral o valor do ICMS da base do PIS e da Cofins apenas a partir de março de 2017. Contudo, em relação ao passado, apenas os contribuintes que já possuíam ação ajuizada antes do julgamento de 2017 poderão exercer o direito à restituição ou compensação de valores pagos indevidamente antes dessa data (março de 2017 para trás, relativo a pagamentos efetuados cinco anos antes do respectivo ajuizamento).

Assim, por exemplo, uma empresa que tenha ingressado com ação judicial em março de 2018, somente terá um ano a restituir (até março de 2017), não podendo retroagir a março de 2013, como aquela que, tendo ingressado, por exemplo, em fevereiro de 2017, poderá retroagir até fevereiro de 2012.

Para a maioria dos ministros, todos os contribuintes podem se beneficiar do entendimento a partir do dia 15 de março de 2017, o que reduz o impacto da decisão para a União. Isso significa que os contribuintes podem se beneficiar da decisão desta data em diante. Mas só aqueles que tinham ações em curso até o dia 15 terão o direito de receber o que pagaram a maior.

Essa situação tem o seguinte contrassenso: ela retira o direito do contribuinte que não ingressou com ação judicial justamente porque não tinha estrutura e informação adequadas (advogados, consultores, etc) ou porque, mais cauteloso, aguardou um posicionamento final do STF para não correr riscos, mediante a plêiade de ações e temas tributários que pululam o cenário jurídico do país, de perda de ações, de incorrer em custos incertos, de ônus de sucumbência, dentre outros. Ademais, com isso, o STF vai na contramão do CNJ e dos movimentos de diminuição de litígios que hoje sabidamente afogam o próprio Poder Judiciário, na medida em que todos os contribuintes terão que ficar propondo medidas judiciais para, no mínimo e por precaução, não perderam o direito de exercitar o seu direito no futuro. A lógica é perversa à paz tributária e à boa-fé do contribuinte.

  • A modulação em favor da Fazenda em matéria tributária premia a irresponsabilidade do gestor público. Segundo o Ministro Fux, no julgamento em análise, o número expressivo de modulações gera estímulo a inconstitucionalidade “conveniente e útil”. Ou, nos dizeres mais agudos de Fachin, não se pode validar a ““displicência” do gestor e “imputar aos contribuintes o ônus de arcar com valores que foram indevidamente arrecadados”. Contudo a Corte entendeu por bem modular, fundando-se ora em questões de interesse social excepcional, confundindo, interesse financeiro com interesse social ou público.

O fundamento jurídico invocado pela União não pode ser o interesse social, pois ele não se confunde com o interesse financeiro. Segundo Min. Fachin e Min. Rosa Weber, importante distinguir segurança financeira de segurança jurídica. O interesse social está atrelado “não a segurança orçamentária, mas a segurança jurídica, base do Estado Democrático de Direito”. Esse posicionamento deve ser melhor examinado nas próximas modulações, já que elas são uma tendência doravante, mesmo que com cautelas na seara fiscal tributária.

Nessa linha, ainda, o Min. Marco Aurélio ressalta que a modulação amplia muito o poder do STF e que se há manicômio tributário ele se deve a voracidade do Estado e a insegurança jurídica que o STF deve reparar.  Outros passos devem e precisam ser dados neste aspecto, pois o STF deve buscar sempre a segurança jurídica do contribuinte em primeiro lugar, sobretudo se ela for qualificada porque tem como causa contribuintes de menor porte ou a mudança de jurisprudência ou precedentes vinculantes em repetitivo.

Preocupou, embora sem prevalecer, a tese do Ministro Gilmar, que, citando o jurista português Casalta Nabais e o espanhol Edurado García de Enterría Gilmar, postulou a “impositividade de se modular”, ou seja, que o juiz responsável não declara inconstitucionalidade para não provocar o caos. Segundo ele, essa situação não se configuraria consequencialismo judicial porque faz parte da própria força normativa da Constituição coibir o caos. A modulação compõe o próprio sistema de Estado de Direito, na versão mais em prol da segurança jurídica do que da legalidade formal. Essa posição preocupa para futuras modulações, sobretudo porque não leva em conta que o modelo europeu de sociedade e produção de leis não passa pelo teste de exame de constitucionalidade constante como o nosso – e quando passa, geralmente não é maciçamente reprovado como o nosso. Outra realidade social e normativa, outro viés interpretativo.

Pontos positivos para o contribuinte

Nesse cenário de “caos” (Min. Gilmar) e “manicômio” (Min. Marco Aurélio), o que foi bom?

  • Sem dúvida, o melhor ponto foi não apenas garantir o direito à restituição aos contribuintes que ajuizaram ação antes de 2017, a partir de 5 anos antes da propositura da referida ação judicial, mas, sobretudo, que se fixou ao menos um norte em matéria de modulação de efeitos na área tributária.

Sim. Todo os ministros voltaram ao passado para fazer um retrospectiva da força da jurisprudência e como ela estava cristalizada, restando fixado o elo entre os seguintes aspectos: mudança de jurisprudência dominante – quebra de segurança jurídica – aplicação do art. 927, parágrafo 3º. do CPC – necessidade de modulação de efeitos.

Em outros dizeres, fixou-se que o pressuposto autorizador inarredável para a modulação é a segurança jurídica e que a quebra do fluxo jurisprudencial a afeta diretamente, sobretudo em casos de decisões em repetitivos ou repercussões gerais, que têm efeitos vinculantes.

Lembramos que a segurança jurídica em decisões de repetitivos deve ser ainda mais evidente, pois estes têm natureza de precedente vinculante decorrente de lei. A segurança jurídica decorrente de mudança jurisprudencial é segurança jurídica especial, pois não decorre apenas da lei, mas da interpretação técnica e reiterada dos tribunais sobre a lei.

Na decisão em análise, hoje, o Ministro Fachin se referiu a  segurança jurídica como sinônimo da “proteção a confiança, calculabilidade e cognoscibilidade. A Min. Rosa Weber, a seu turno, pontuou, em brilhante voto, sobre o “estado de estabilidade necessária para fundar a segurança jurídica”. Adiante traz conceitos importantes como o da “probabilidade de confiança justificada”. “Sempre esteve ao lado do contribuinte a probabilidade do direito alegado”, sustenta, citando, ainda, o conceito de zona de penumbra aplicado ao campos das decisões do STJ ante o STF: Ao decidir, o STJ agrega conteúdo à ordem jurídica vinculante, que deixa, assim, de constituir sinônimo de ordem legislada. Por consequência, a “decisão” da Corte passa a orientar a vida em sociedade e a regular os casos futuros. Se a Corte reconstrói o produto do legislativo para atribuir sentido ao direito, a igualdade, a liberdade e a segurança jurídica apenas não serão violadas se o precedente instituído for respeitado pelos juízes e tribunais inferiores. De modo que a obrigação de respeito é tão somente consequência da função contemporânea da Corte” (genjurido.com.br 15/4/19)

O pano de fundo foi a estabilidade jurisprudencial sobre o tema. O Min. Fux e a Min. Rosa Weber destacaram bem isso. “Organizou-se um quadro caótico que nos deparamos sobre a interpretações na própria seara judicial”, constatou o Min. Gilmar Mendes.

O STF agora precisa manter isso para não mudar a jurisprudência sobre a fixação de critérios para modulação de efeitos da própria jurisprudência, e não cair, assim, numa “espiral hermenêutica” condutora ao “caos e ao manicômio” que hoje, reiteradas vezes, ele próprio sustentou que estava rechaçando.

  • Prevaleceu o entendimento, favorável ao contribuinte, de que a base de cálculo a ser excluída a título de ICMS é efetivamente o valor bruto destacado na nota e não o valor líquido (efetivamente pago).

A decisão, mesmo a partir de março de 2017, contudo, não tem efeito “erga omnes” (a norma abstrata não foi retirada do mundo jurídico, o que demandaria resolução do Senado Federal), lembrando que não se trata de Ação Direta de Inconstitucionalidade, mas sim de decisão em sede repercussão geral, com efeito vinculante para as demais instâncias do Poder Judiciário. Cada contribuinte deve buscar, se ainda não o fez, a sua respectiva medida judicial.

Concluo chamando atenção para o voto do Min. Fux, Presidente da Corte, que pontuou que a segurança jurídica é um “fator relevante de investimento no país” e deve servir o contribuinte particular, o capital estrangeiro e o nacional.

Assiste razão a ele, senão na modulação ou assertiva sobre a falta de força global em prol de vencer a pandemia, mas com certeza na situação de o Princípio da segurança jurídica ser um fator relevante de investimento no país e, complementando, de fomento da estabilidade das decisões judiciais na vida das pessoas.

Modulação. Quórum qualificado de 2/3 – art. 27 da Lei 9869/99

Art. 927, parágrafo 3º. CPC

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