Fruto dos necessários avanços no ambiente dos litígios tributários, dado o cenário brasileiro que abarca complexidade sistêmica, burocracia (fiscal e judicial), acúmulo de processos (administrativos e judiciais) e inadimplência, sobreveio a Lei nº 13.988/20 (fruto da conversão da MP nº 899/19) para regulamentar a transação tributária disposta no artigo 171 do CTN.
Sob esse contexto, importa rememorar que a transação tributária é um instituto que instrumentaliza a celebração de concessões mútuas entre sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária para que se alcance a solução do litígio e a consequente extinção do crédito tributário.
Ainda em período de maturação, a Lei 13.988/20 introduziu modalidades de transação: 1) por proposta individual ou por adesão, quanto à cobrança de créditos inscritos na dívida ativa da União, 2) por adesão, nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo fiscal e 3) por adesão no contencioso tributário de pequeno valor.
Segundo dados da publicação “PGFN em números 2022” (dados de 2021), a transação tributária se consolidou como o “principal instrumento de regularização tributária do contribuinte brasileiro” [1], alcançando mais de R$ 200 bilhões em dívidas regularizadas até ao final de 2021.
Contudo, mesmo após a necessária regulamentação (ex.: Portaria ME nº 247/20 e respectivos atos da PGFN) essa política de diálogo entre Fisco e contribuintes necessitava de avanço e de aprimoramentos, notadamente para fazer com a que a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), de fato, participasse do ambiente das transações tributárias.
Oportuno destacar que o crédito tributário federal, conforme a fase de cobrança, é tratado por dois órgãos da administração, cabendo:
1) à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) as atribuições de lançar, fiscalizar e arrecadar os tributos e as contribuições previdenciárias federais (cobrança operacional das dívidas tributárias) e,
2) à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), órgão ligado à Advocacia Geral da União (AGU), a responsabilidade pela cobrança de débitos não quitados perante a União (cobrança judicial da dívida ativa da União — CDA).
Desde a edição da Lei 13.988/2020, os representantes desses órgãos passaram a ter competência legal para firmarem transações tributárias resolutivas de litígios relativos à cobrança de créditos de natureza tributária.
Entretanto, em 21 de junho de 2022, por meio da edição da Lei nº 14.375, foram promovidos importantes melhoramentos no regime da transação tributária federal, dentre os quais se destacam 1) a inclusão do contencioso administrativo fiscal na seara das transações por adesão ou individuais tratadas com a RFB e 2) a utilização créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL, na apuração do IRPJ e da CSLL, até o limite de 70% (setenta por cento) do saldo remanescente após a incidência dos descontos.
Importante ressaltar que a implementação de soluções dialógicas e, portanto, não litigiosas em sede das disputas tributárias, são exortadas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (vide Recomendação nº 120/21 [2]) e se transformaram em um dos principais eixos dos nove anteprojetos de lei apresentados ao Congresso pela Comissão de Juristas formada em razão do Ato Conjunto nº 1 [3], firmado em 23 de fevereiro de 2022 pelos presidentes do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, o trabalho [4] da Comissão de Juristas presidida pela ministra Regina Helena Costa do STJ teve por escopo elaborar proposições legislativas para fins de dinamização, unificação e modernização do processo administrativo e tributário nacional. E, para tanto, estipula normas gerais para disciplinar o regime jurídico dos meios alternativos de solução de litígios, dentre os quais: a transação (meio autocompositivo), a arbitragem e a mediação em matéria tributária (meios heterocompositivos).
Nesse diapasão, após o advento da Lei nº 14.375/22, a Receita Federal do Brasil se estruturou para operacionalizar as transações dos créditos de sua competência. Para tanto, já em agosto de 2022, editou uma primeira portaria sobre o instituto, e em meados de novembro deste mesmo ano, as Portarias RFB nº 247/22 [5] e nº 248/22 [6].
Com efeito, a Portaria nº 247/22 regulamenta a transação dos créditos tributários em contencioso administrativo sob a administração da RFB. Já a Portaria nº 248/22, criou a Equipe Nacional de Transação de Créditos Tributários (Enat), a quem compete, em âmbito nacional, a celebração das transação resolutiva de litígios na cobrança de créditos tributários em contencioso administrativo fiscal.
Em uma avaliação dessa recente evolução legislativa e regulamentar, pode-se afirmar que o instituto da transação tributária encontrou ressonância no trato das relações entre fisco (RFB e PGFN) e contribuintes.
Mas, para a surpresa dos principais atores que contribuem para essa mudança de paradigma no cenário litigioso tributário, em 13/12/2022, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal aprovou destaque ao PLP 127/21 para o acatamento integral da Emenda Supressiva nº 3 [7], proposta pelo senador Carlos Portinho (PL-RJ), cujo objetivo é retirar da Receita, e transferir para a PGFN, a competência para transacionar créditos tributários em contencioso administrativo fiscal.
Sem embargo, essa alteração de competência, inserida no artigo 4º do PLP 127/21, seria levada à efeito mediante a alteração do artigo 10-A da Lei nº 13.988/2020, cujos termos passariam a dispor o seguinte:
“Artigo 10-A. A transação na cobrança de créditos tributários em contencioso administrativo fiscal poderá ser proposta pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, de forma individual ou por adesão, ou por iniciativa do devedor, observada a Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.”
Em nossa opinião, se efetivada, essa alteração legislativa representará um sensível retrocesso na construção do ambiente das soluções alternativas de litígios tributários, eis que a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil é órgão singular da estrutura do Ministério da Fazenda e, bem por isso, responsável pela administração dos tributos de competência da União na fase da cobrança anterior à inscrição em dívida ativa.
Demais disso, outros fatores corroboram em desfavor dessa tentativa de supressão de competência proposta de forma apressada e em desrespeito à correta técnica legislativa.
Quanto ao aspecto legislativo, deve-se destacar que o PLP 127/21 foi originalmente encaminhado para tão somente alterar a Lei Complementar nº 123/2006 (Lei do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte) e, sob esse contexto, dispõe sobre a alteração de sublimites de faturamento do Simples Nacional, inexistindo conexão temática com o objeto da Emenda Supressiva nº 3.
Já em relação à proposta de supressão de competência da RFB para fins de transação no contencioso administrativo fiscal deve-se alertar o seu açodamento, haja vista o fato de a RFB ter se estruturado para a recepção e a análise dos pedidos a ela submetidos, conforme se dessume do teor da já mencionada Portaria RFB nº 248/22, sendo que milhares de contribuintes já deram entrada com pedidos no Centro Virtual de Atendimento (e-CAC) e aguardam resposta da RFB em relação aos pleitos efetuados.
Quanto à eventual restrição de transação no contencioso administrativo fiscal, todo o arcabouço normativo extraído da Lei nº 13.988/20 está condicionado aos mais caros princípios de direito público. Neste diapasão, a Portaria RFB nº 247/20, em seu artigo 2º, assim prescreve:
“Artigo 2º São princípios aplicáveis à transação dos créditos tributários sob administração da RFB:
I – presunção de boa-fé do contribuinte;
II – concorrência leal entre contribuintes;
III – estímulo à autorregularização e conformidade fiscal;
IV – redução de litigiosidade;
V – menor onerosidade dos instrumentos de cobrança;
VI – adequação dos meios de cobrança à capacidade de pagamento dos contribuintes;
VII – autonomia de vontade das partes na celebração do acordo de transação;
VIII – atendimento ao interesse público; e
IX – publicidade e transparência ativa, ressalvada a divulgação de informações protegidas por sigilo, nos termos da lei.”
Ainda que esses motivos já sejam suficientes para a manutenção da competência aqui defendida, há que se considerar que o instituto da transação tributária sofrerá sensível retrocesso, eis que a RFB, no âmbito de sua competência, já vem assegurando aos contribuintes a possibilidade de requererem a transação em litígios submetidos aos processos administrativos fiscais regidos pelo Decreto nº 70.235/72, pelo Decreto nº 7.574/2011 e pela Lei nº 9.784/99, desde que tratem de matéria tributária.
Sob esse contexto, podem ser objeto de pedidos de transação com a RFB, desde que atendidas as condições legais e regulamentares, e, em especial, o interesse público, créditos tributários relativos a 1) pedidos de habilitação de crédito, 2) compensação não declarada, 3) arrolamento de bens e direitos, 4) regimes aduaneiros especiais, 5) manifestações de inconformidade contra decisão de cancelamento de ofício de declaração retificadora de Dirf, 6) programas especiais de parcelamento, dentre outros.
Observe-se, ainda, que a transação, nas hipóteses acima destacadas, deve atender ao requisito da existência de contencioso, a teor do que dispõe a atual redação do artigo 10-A da Lei nº 13.988/20 [8], como também todo o arcabouço regulamentar da Portaria RFB nº 247/22
Fortes nas razões acima expendidas, e acompanhados pelas recentes e importantes manifestações das mais representativas entidades de defesa dos direitos dos contribuintes, como o Instituto Geraldo Ataliba (IGA) – (Idepe), o Movimento de Defesa da Advocacia (MDA), a Comissão de Direito Tributário Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB/SP), o Instituto de Aplicação do Tributo (IA), a Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), a Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat), a Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), defendemos a manutenção da competência da Secretaria especial da Receita Federal do Brasil quanto à pauta da transação tributária no contencioso administrativo fiscal. Nesse sentir, reafirmamos e alertamos que a aprovação do artigo 4º do PLP nº 127/21 representará um retrocesso para os meios alternativos de solução de litígios tributários.
[1] https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros/pgfn_em_numeros25042022-compressed.pdf. Acessado em 15/12/22.
[2] https://atos.cnj.jus.br/files/original2329372021110361831b61bdfc3.pdf. Acessado em 15/12/22.
[3] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9087234&ts=1670513972976&disposition=inline. Acessado em 15/12/22.
[4] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9198204&ts=1662471328151&disposition=inline. Acessado em 15/15/22.
[5] http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=127311. Acessado em 15/12/22.
[6] http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=127310. Acessado em 15/12/22.
[7] documento (senado.leg.br). Acessado em 15/12/22.
[8] “Artigo 10-A. A transação na cobrança de créditos tributários em contencioso administrativo fiscal poderá ser proposta pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de forma individual ou por adesão, ou por iniciativa do devedor, observada a Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993“. (Incluído pela Lei nº 14.375, de 2022)
FONTE:
https://www.conjur.com.br/2022-dez-19/netoe-natal-retrocesso-aprovada-emenda-plp-127