Sira: sistema de recuperação de ativos deve acelerar execuções fiscais
Proposta de base única de dados consta na MP 1040/21. Para especialistas, regras de uso precisam ficar mais claras
Por Clara Cerioni
31/05/2021 às 05:10
Crédito: Pixabay
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As execuções fiscais de débitos inscritos em dívida ativa são um dos principais gargalos do Poder Judiciário brasileiro há anos. Só em 2019, os processos dessa natureza representaram 39% do total de casos pendentes, com taxa de congestionamento de 87%, segundo dados do Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Naquele ano, a cada 100 processos de execução fiscal que tramitaram na Justiça, apenas 13 foram baixados.
Só no âmbito federal, o estoque atual das dívidas ativas supera R$ 2 trilhões, de acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Pouco menos de metade desse montante (45%) é classificado pelo órgão como irrecuperável ou com baixa possibilidade de recuperação.
As causas para esse cenário são inúmeras, como, por exemplo, o complexo sistema tributário adotado no país. Outra é a falta e a fragmentação dos dados desses devedores, o que impede que processos de execução fiscal sejam finalizados. Em um país com a extensão do Brasil, onde vivem mais de 210 milhões de pessoas em mais de 5 mil municípios, não é uma tarefa fácil manter atualizados todos os bancos de informação existentes. Ou seja, encontrar bens do devedor para quitar a dívida pendente é como procurar uma “agulha no palheiro”.
É nesse complexo contexto que se inserem as tratativas em andamento do governo federal, por intermédio da PGFN, com o Congresso Nacional para a criação do Sistema Integrado para Recuperação de Ativos (Sira). A proposta foi enviada em março deste ano ao Poder Legislativo, no âmbito da Medida Provisória 1.040/2021, que tem por finalidade melhorar o ambiente de negócios do Brasil.
Na exposição de motivos endereçada ao Congresso, representantes do governo dizem que o Sira “facilitaria a recuperação do crédito, reduzindo o tempo de tramitação das ações de cobrança, dando maior eficiência à execução de contratos, uma vez que reduziria a alta taxa de congestionamento dos processos de execução”. Segundo o documento, o sistema seria “capaz de reunir dados cadastrais, relacionamentos e bases patrimoniais de pessoas físicas e jurídicas para subsidiar a tomada de decisão no âmbito de processo judicial em que se demanda a recuperação de créditos públicos ou privados”.
“Ao longo dos últimos anos, a PGFN desenvolveu uma boa expertise em recuperação de créditos e isso envolve, obviamente, estruturação e análise de dados. Mas ainda há a dificuldade de, depois de uma sentença favorável ao título executivo judicial, materializá-lo. E aí começa o drama, porque no nosso país essa parte de dados é tão fragmentada quanto a nossa federação”, explica o procurador da Fazenda João Grognet, coordenador-geral de Estratégias de Recuperação de Créditos da PGFN.
Segundo Grognet, o Sira foi pensado para preencher uma “lacuna gravíssima no nosso país, que é do credor ganhar mas não levar”. “Veja, o que estou privilegiando aqui é o direito do credor, mas também estou garantindo o do devedor. E como faço isso? Submetendo o acesso às informações a uma demanda judicial. Nosso Judiciário é suficientemente independente para garantir o direito do devedor. Se o Judiciário disser: isso é impenhorável. É impenhorável e ponto. O que o Sira se propõe é apenas informar que o credor tem um bem”, continua o procurador.
A explicação de Gronet ao JOTA, se confirmada na prática, atenua uma preocupação de advogados especialistas em contencioso consultados pela reportagem. Os especialistas temem que o Sira poderia ativamente fazer a constrição e a alienação de ativos pela via administrativa, e não judicial, devido à redação dada ao artigo 13, II da MP. Isso poderia conflitar com decisão já proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Fazenda Pública pode averbar, mas não decretar a indisponibilidade de bens sem decisão judicial ou direito ao contraditório.
“Não é competência do Poder Executivo fazer constrição de nada. Nesse primeiro momento o Sira se propõe a entregar um relatório ao magistrado, o que nos deixará muito melhor do que na situação de hoje. No futuro, pode ser que haja a integração com outros sistemas, como o Sisbajud [que atua no cumprimento de ordens de afastamento de sigilo bancário e de bloqueio de valores para o pagamento de credores]”, diz Grognet.
Expectativa de redução do contencioso
A proposta de criação do Sira tem como uma das premissas agilizar os processos judiciais e, por consequência, reduzir no contencioso tributário as disputas que ficam paralisadas pela dificuldade de executar as sentenças. Na visão de advogados ouvidos pelo JOTA, a iniciativa é positiva e deve, de fato, acelerar a resolução de litígios de cobranças que não se encerram pelo não encontro de bens para quitar as dívidas.
No entanto, foi unânime entre os especialistas o entendimento de que este novo sistema precisa assegurar todos os direitos, tanto dos credores quanto dos devedores, com travas legais principalmente no que diz respeito ao compartilhamento de dados dos contribuintes, para que novos contenciosos não se criem a partir de seu uso.
Na avaliação de Maria Raphaela Matthiesen, do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, o maior ganho com o uso do sistema deve ser por parte da PGFN, que pode se beneficiar do Sira para dar andamento às execuções fiscais com valores inferiores a R$ 1 milhão e nas quais não tenha sido encontrado nenhum bem.
“Desde 2016, portarias editadas pela PGFN colocaram essas execuções fiscais em segundo plano, e elas acabam sendo arquivadas se no prazo intercorrente não se encontrou algum bem. Com o sistema se poderia ter uma base de dados que auxiliaria a cobrança desses créditos, que ficam um pouco secundários na prioridade”, avalia a advogada, acrescentando que se o Sira for compartilhado com as fazendas estaduais e municipais esse impacto tende a ser ainda maior.
Ao JOTA, Grognet confirmou que está em processo de análise a possibilidade de algum nível de acesso às fazendas estaduais e municipais. “Pode ser possível conceder acesso para tramitar dados não sigilosos. Hoje, os órgãos se limitam a bases como Renajud, Sisbajud e Infojud. Mas isso é a ponta do iceberg das informações públicas patrimoniais que se pode ter acesso”, afirma.
Carolina Chaves Hauer, sócia do G.A Hauer & Advogados Associados, destaca, contudo, que o Sira pode trazer um impacto menos positivo para os contribuintes. “A criação do sistema certamente aumentará a assimetria de informações, bem como a dificuldade de defesa do contribuinte, já que será mais um sistema à disposição da Fazenda Nacional para localização (ou melhor, devassa) de bens dos devedores”, diz.
A possibilidade de acelerar o cumprimento de sentenças de cobrança por intermédio do Sira vai repercutir também em outras áreas, como a cível e a trabalhista, de acordo com Renata Cavalcante de Oliveira, sócia de contencioso cível estratégico e de recuperação de crédito na Rayes & Fagundes Advogados.
“A ideia de unificar em um só sistema o que hoje é pulverizado é bem interessante e vai impactar a advocacia tributária, cível e trabalhista, que trabalham com recuperação de créditos. Hoje pedimos informações para diversos bancos de dados, todos separados, cada um cobrando uma taxa de acesso diferente. Existem, ainda, informações que nem estão disponíveis nos sistemas que hoje usamos. Por isso vejo com bons olhos a ideia de centralizar tudo num só sistema”, avalia.
Na previsão de Dayse Starling, juíza auxiliar da Presidência do CNJ, que atua com o Sisbajud, é possível que a utilização do Sira incentive outros órgãos públicos a desenvolver novas bases de dados, que hoje não existem.
“A concepção do Sira é muito interessante porque a ideia é que ele fomente, entre os órgãos do Poder Executivo mais chamados a cumprir decisões judiciais, a criação de outras bases de dados para que o juiz demande informações. E aí em vez de o magistrado ter que entrar em vários sistemas ou o Judiciário ter que fazer convênio com vários órgãos diferentes tudo estará em um só lugar”, afirma.
De acordo com Starling, um sistema nos moldes do Sira tem o potencial de “retirar o tempo de prateleira dos processos”, ou seja, o tempo que se demora para uma decisão judicial ser executada devido ao moroso processo de encontrar o bem do devedor.
“Hoje, um servidor recebe a decisão e vai entrar em todos os sistemas, solicitar uma demanda e esperar a resposta. Só que nesse meio tempo ele já recebeu uma pilha de outros processos para cuidar”, explica. “Então, com a criação de um sistema eu retiro esse prazo e, por isso, eu acelero o cumprimento da ordem judicial”, continua.
Preocupações com novos contenciosos
Apesar das expectativas positivas com o Sira, os especialistas consultados pela reportagem destacam que, para que o sistema não seja considerado ilegal, é necessário que ele assegure e respeite o direito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas e das instituições, em cumprimento aos preceitos constitucionais e ao devido processo legal.
“Cabe ao legislador demonstrar claramente como essa ferramenta funcionará, como suas bases serão alimentadas e o quanto ela representará, de fato, a realidade do patrimônio e dados cadastrais atuais dos devedores, inclusive para que a ferramenta não caia em descrédito. Sabemos que um conjunto tão abrangente de informações poderá ser utilizado de forma inadequada, e essa é uma preocupação de todos os operadores do direito”, afirma Carolina Chaves Hauer, sócia do G.A Hauer & Advogados Associados.
O ponto de maior atenção levantado pelos advogados envolve a proteção aos dados que os relatórios do Sira disponibilizarão, uma vez que o texto da MP, no artigo 15, IV, diz que um dos princípios do Sira é o “respeito à privacidade, à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas e às instituições, na forma prevista em lei”. A regulamentação das regras e diretrizes para o compartilhamento de dados e informações, entretanto, ficará a cargo de ato posterior do presidente da República.
“A redação dos artigos trata de forma genérica algumas questões relevantes, como nível de acesso e proteção dos dados. Acredito que os limites deveriam estar mais estabelecidos no texto da MP. Mais tarde, no artigo 16, diz que virá o regramento. Sim, mas os congressistas podem estar aprovando uma norma em branco, que pode dar margem para discussão”, afirma Andréa Mascitto, sócia do Pinheiro Neto Advogados e professora de Direito Tributário na FGV.
Para Mascitto, a iniciativa de ter um sistema integrado, que não tenha bases de dados divergentes, é salutar, mas depende de bases definidas para não abrir margem para disputas e resistências com o uso do Sira. “Com mais informações sobre os contribuintes será possível dar andamento a execuções consideradas de baixa recuperabilidade. Isso, por si só, já vai melhorar a efetividade da arrecadação, desde que respeitados os limites das legislações sobre os direitos dos contribuintes”, continua.
O tópico da proteção de dados deve ser discutido pelo Congresso. Na emenda aditiva à MP de número 250, de autoria do deputado Alexis Fonteyne (Novo-SP), propõe-se acréscimo de um parágrafo único no artigo 14 da MP, referente ao respeito do sistema à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “O Sira zelará pela liberdade de acesso, uso e gerenciamento dos dados pelo seu titular, na forma do art. 9º da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, além de todo o regime geral de proteção de dados aplicável”, diz a emenda do parlamentar.
De acordo com Grognet, da PGFN, os acessos ao sistema devem ficar restritos aos magistrados e aos servidores por eles autorizados. Além disso, não haverá mudança na classificação de sigilo dos dados pessoais. “Um ponto importante é que não haverá alteração de classificação de sigilo. Se o dado é sigiloso, ele vai continuar sendo no Sira. Isso não muda em absoluto”, diz o procurador da Fazenda.
Na avaliação de Halley Henares, presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT), para validar um sistema com os moldes do Sira é preciso que haja uma disciplina detalhada na legislação. Caso contrário, afirma, é possível que se crie novos contenciosos para debater a legalidade do projeto.
“Aqui, a meu ver, muita definição ficou aberta para disciplina posterior, e meu medo é que essas lacunas abram caminho para uma discricionariedade sem limites. Além dos pressupostos, é preciso estabelecer quais são os direitos dos contribuintes. Por isso, é importante fixar bem as diretrizes e os critérios. No meu entendimento, isso tudo é matéria de reserva de lei, e não de decreto posterior”, diz.
Henares destaca, ainda, que a implementação do Sira não pode “colocar a perder ou diminuir o espectro de outras modalidades de resolução de litígios no âmbito fiscal, como a transação tributária e a mediação”. “Isso tudo pode gerar insurgência e, como consequência, um novo contencioso, administrativo e judicial, o que não é o objetivo da norma”, conclui.
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CLARA CERIONI – Repórter Freelancer. Trabalhou no JOTA de setembro de 2020 a fevereiro de 2021. Antes, foi repórter de macroeconomia na Exame.